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  • Foto do escritorMarcos Maia

O sofrimento psíquico




Inicialmente, é importante ressaltar a legitimidade de uma variedade de formas de sofrimento psíquico que caracterizam quadros clínicos. Seria um grande equívoco negacionista subestimar e relativizar a existência desses quadros.

O objetivo aqui consiste em explorar elementos relacionados a algumas formas de sofrimento, sobretudo problematizar a concentração de suas causas no indivíduo.

Numa conversa no Lutz Podcast, o psicanalista Christian Dunker fala sobre a noção de doenças mentais. Ele parte da perspectiva de que uma doença se caracteriza por marcadores biológicos e alterações de tecido no corpo humano.

Dunker destaca que a maneira pela qual é compreendido o sofrimento altera o próprio sofrimento. Porém, a maneira como é entendida a tuberculose, por exemplo, não altera a manifestação da doença, visto que as descrições das doenças têm uma função de contribuição para a criação de maneiras de combatê-la.

Um câncer, portanto, deriva da não identificação de novas células com alteração em seu DNA por parte do sistema imunológico, o que dá origem à multiplicação dessas células produzindo assim o tumor.

Tendo em vista que não há marcadores biológicos que sinalizem as supostas doenças mentais, também não existem até então exames que sejam capazes de identificar os transtornos psiquiátricos. O estudo britânico que decorreu no artigo científico “The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence” (“A teoria da serotonina na depressão: uma revisão sistemática das evidências”) publicado na revista Molecular Psychiatry pelos pesquisadores Joanna Moncrieff, Ruth E. Cooper, Tom Stockmann, Simone Amendola, Michael P. Hengartner e Mark A. Horowitz constata que não há evidências convincentes que comprovem a hipótese da relação entre a depressão e a atividade da serotonina, o que coloca em questão, inclusive, a função dos antidepressivos.

Em Psicologia ou Psicanálise, entende-se que não cabe considerar as formas de sofrimento psíquico a partir da mesma ótica médica porque o objeto de estudo desses campos de saber não são os mesmos. E esses campos não são excludentes.

Quando os quadros clínicos são reduzidos à noção de doença, concentra-se o problema no indivíduo, que frequentemente é estigmatizado como um corpo adoecido, a doença como uma condição natural individual. Com isso, são naturalizadas diversas formas de vida, não raramente inóspitas, insalubres, assim como formas de exploração (exploração sexual, exploração no trabalho etc.), formas de linguagem, condições financeiras e formas de relações de um modo geral, sejam essas relações consigo mesmo, relações humanas ou relações com as coisas (relações com os bens, com as tecnologias, com substâncias químicas etc.), descartando a compreensão dos quadros de sofrimento como uma reação a essas formas de vida.

Além das variáveis associadas às manifestações subjetivas que produzem sofrimento, a concentração do problema no indivíduo favorece também à criação de formas de tratamento que incluem a segregação, o que possui também atravessamentos de natureza socioeconômica.

Neste mero recorte apresentado como exemplo, diante da não adaptação a um excesso de estímulos e às demandas por eles intermediadas, descrevem-se doenças relacionadas à atenção, à memória, ao humor, doenças que se manifestam com sintomas de hiperatividade etc. Quando não se faz uma análise mais complexa das relações que repercutiram na suposta doença, resta recorrer ao recurso utilizado para combater doenças, ou seja, a utilização de medicamentos. O uso de medicamentos não como um recurso paliativo possivelmente transitório, mas a partir do momento em que o problema está no indivíduo, esse medicamento exerce definitivamente uma função de solução do problema.

A própria relação com a linguagem digital que se desenvolveu nos últimos anos deve ser considerada, tendo em vista que, embora não seja regra, nesse universo existe uma tendência à emissão de opiniões, crenças e valores de maneira mais impetuosa, desqualificando e agredindo segmentos que refletem diferenças, produzindo um ambiente hostil. E todo esse conteúdo sendo acessível em tempo integral, frequentemente realizando linchamentos virtuais que, embora não correspondam a agressões físicas, aniquilam subjetivamente formas de vida. Em contrapartida, ocorre também uma deterioração de laços sociais com as relações sendo cada vez mais subordinadas a tecnologias de comunicação à distância.

Freud inicia seu texto Psicologia das massas e análise do Eu afirmando que "a oposição entre a psicologia individual e psicologia social ou das massas, que pode nos parecer muito importante à primeira vista, perde muito de sua nitidez se examinada a fundo. Certamente, a psicologia individual é dirigida ao ser humano individualmente e procura seguir por quais caminhos ele tenta alcançar a satisfação de suas moções pulsionais; no entanto, ao fazê-lo, e sob determinadas condições excepcionais, só raramente ele estará em posição de desconsiderar as relações desse indivíduo com os outros. Na vida psíquica do indivíduo, o outro é, via de regra, considerado como modelo, como objeto, como auxiliar e como adversário, e por isso a psicologia individual é também, de início, simultaneamente psicologia social, nesse sentido ampliado, mas inteiramente legítimo".

Portanto, a perspectiva causal do sofrimento centralizada no indivíduo favorece que, em casos extremos como o suicídio, por exemplo, o tema seja reduzido a um viés de doença que teria sido a causa da decisão, muitas vezes descartando uma reflexão em torno do contexto em que essa decisão se desenvolveu ou, quando esse contexto é levado em consideração, supõe-se de maneira simplista um elemento que se possa considerar ter sido um suposto “gatilho” para a tomada dessa decisão.

A partir do viés psicanalítico, não se propõe dissipar definitivamente o sofrimento da vida do sujeito, pois seria impossível não sofrer ao longo da vida, mas desenvolver maneiras de lidar com o sofrimento e dissolvê-lo para que não seja algo incapacitante.

A questão neste texto não é necessariamente a forma de descrever condições de sofrimento psíquico, mas os recursos e efeitos a elas associados, ou seja, um caráter mais amplo do que transforma experiências em sofrimento e como abordá-las, sejam essas experiências pontuais ou uma combinação de experiências.

O problema do sofrimento psíquico não é individual, mas social, político e econômico, e sinaliza uma necessidade de transformações, ainda que numa dimensão molecular.




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