Numa perspectiva voltada para o contexto brasileiro, considerando a inserção do tema em sua legislação vigente, vale questionar: a judicialização do conceito pode ser construtiva nos casos de conflitos familiares decorrentes de uma separação? Que riscos podem ser oferecidos na aplicação da lei?
A partir dessas interrogações, seguem algumas considerações a respeito do conceito de alienação parental e suas implicações.
ALIENAÇÃO PARENTAL
Ao tratar-se da alienação parental enquanto tema, vale lembrar que no Brasil o fenômeno ganha relevo durante um desdobramento sócio-histórico dos conceitos de família.
A legislação brasileira passou por uma série de transformações marcadas por características inerentes às suas épocas. Ainda no período colonial, o Código Civil Português – legislação vigente na época – não reconhecia, por exemplo, o casamento de protestantes e judeus. Na estreia da inquisição portuguesa no Brasil, a partir de 1591, ocorreu um rastro de amedrontamento que rompeu as relações de solidariedade cotidiana que unia, inclusive através do matrimônio, os chamados cristãos-velhos a cristãos-novos, estes assim denominados por se tratarem de judeus que chegaram ao Brasil envolvidos com a economia açucareira e foram compulsoriamente convertidos ao cristianismo, o que representava uma ameaça ao Santo Ofício sob a suspeita de continuarem professando o judaísmo em sinagogas domésticas.
Somente após a Proclamação da República, os casamentos realizados na esfera civil, com reconhecimento de autoridades competentes, ganharam legitimidade por parte do Estado, rompendo assim com a jurisdição eclesiástica. O Código Civil de 1916 consolidou a família enquanto união embasada legalmente através do casamento civil, com repúdio ao concubinato, e instituiu o pátrio poder. A separação, conforme o Código, ocorria somente através do desquite, sob uma lógica de culpa que considerava apenas a separação de corpos, mas preservava o matrimônio, consequentemente levando ao celibato forçado. A guarda dos filhos era concedida ao genitor julgado “inocente” e, caso ambos fossem “culpados”, as filhas menores e os filhos com até seis anos de idade ficavam sob guarda da mãe, cabendo decisões distintas somente em casos julgados como graves, de cunho caracteristicamente morais. O Estatuto da Mulher Casada, de 1962, concedeu plena capacidade jurídica à mulher, garantindo-a direito de decisão sobre o patrimônio e os filhos, porém ainda considerando-a como uma colaboradora e o homem como o chefe da família.
O modelo predominante de família passou a ser questionado pelo movimento feminista, pela inserção da mulher no mercado de trabalho, pela liberação sexual e pelo consumismo, até que em 1977 foi promulgada a chamada Lei do Divórcio, abolindo o termo "desquite", mas permitindo apenas um divórcio por cidadão. No que dizia respeito à guarda dos filhos, a legislação referida permaneceu seguindo a lógica do Código Civil de 1916.
A Constituição Federal de 1988, portanto, passou a legitimar o concubinato sob denominação de união estável, porém, com a ressalva de que é legitimado desde que não haja impedimento para o casamento. Alguns formatos de família ganharam legitimidade, como a família monoparental, e também ficou proibida a discriminação entre filhos de origem dentro ou fora do casamento, bem como por adoção. Uma das críticas à Constituição é a manutenção de uma prevalência da família constituída por um homem e uma mulher, não tratando da família homoafetiva, ainda que se rejeite a discriminação sexual. Posteriormente, o Código Civil de 2002 aboliu o pátrio poder, criando o conceito de poder familiar, este estendido à mulher, assim como passou a reconhecer a separação por falta de amor sem prejuízo de direito de pensão e deixou de considerar o adultério como preponderante na separação.
Portanto, em junho de 2008 foi sancionada a lei que altera o Código Civil de 2002 promovendo a guarda compartilhada, modalidade esta que responsabiliza conjuntamente o pai e a mãe separados pelos seus filhos comuns. Assim como a guarda monoparental, a guarda compartilhada passou a ser mais uma alternativa a ser requerida por consenso dos genitores em litígio.
Somente em 2011, em julgamento à ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº4277 e à ADPF (Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental) nº132, o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu a união estável entre casais homoafetivos. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autorizou os cartórios do país a registrarem casamentos civis e uniões estáveis entre casais homoafetivos através da Resolução nº175, o que contribuiu para o não impedimento de adoção de crianças e de adolescentes por pessoas do mesmo sexo, e em 2017, através do Provimento nº63, instituiu o registro de filhos gerados através das técnicas de reprodução assistida, incluindo de casais homoafetivos.
Ao longo desses desdobramentos, foi sancionada em 2010 a lei nº12.318, que dispõe sobre a alienação parental. Essa denominação deriva do conceito de Síndrome de Alienação Parental que, ao ser nomeado pelo psiquiatra americano Richard Gardner, passou assim a obter visibilidade mundial desde 1985.
De acordo com Gardner, "(...) a síndrome se desenvolve a partir de programação ou lavagem cerebral realizada por um dos genitores para que o filho rejeite o outro responsável".
Uma observação a ser destacada é a de que se entende que não se trata de um fenômeno novo. Porém, o que Gardner traz de novo é uma patologização na qual se enquadra, de acordo com o autor, como uma síndrome. Também é possível observar a expectativa de Gardner para que seja incluída a Síndrome de Alienação Parental (SAP) no DSM-V, produzido pela Associação Americana de Psiquiatria. Autores que abordam o tema na literatura acadêmica ressaltam que a naturalização do conceito pode produzir a ideia de que muitos casos de separação possam predispor ao surgimento da suposta síndrome.
É importante considerar o teor tendencioso na abordagem da SAP quando não desconstruídas algumas hierarquias de papeis atribuídas às relações de gênero ainda presentes em discursos que submetem a mulher a uma condição de cuidadora do lar, a uma identidade de "mãe amorosa".
Presume-se uma influência dessas construções históricas na própria divulgação de Gardner de sua pesquisa que inicialmente publicou a constatação de que em mais de 80% dos casos estudados, as mães eram alienadoras, porém, após grande polêmica provocada com a reação crítica de movimentos de mulheres nos Estados Unidos, foi retificada a divulgação afirmando que a proporção de mães alienadoras seria de 50% e a outra metade sendo os pais.
Diante de algumas características punitivas instituídas pela lei que dispõe sobre a alienação parental que pode determinar, entre outras situações, a inversão de guarda, é importante destacar a exigência de especialistas no assunto para identificação da suposta síndrome e da determinação de conduta dos mesmos na utilização de laudos periciais. Vale ressaltar o problema ético no âmbito da Saúde, sobretudo na Psicologia, quando instrumentos técnicos são utilizados como armas jurídicas punitivas.
Em artigo publicado na revista Psicologia: Ciência e Profissão pelas pesquisadoras Analícia Martins de Sousa e Leila Maria Torraca de Brito já em 2011, as autoras destacam: “Em julho de 2010, alcançou grande destaque na mídia o caso de uma menina de 5 anos de idade que teve a guarda invertida em favor do pai, ao mesmo tempo em que foi impedido qualquer contato entre mãe e filha pelo período de noventa dias. Embora fosse uma criança saudável, como garantiu seu pediatra, a menina veio a falecer após sucessivas internações hospitalares ao longo do primeiro mês em que esteve sob a guarda do pai. Ao serem identificados ferimentos e luxações no corpo da criança, foi levantada a suspeita de maus-tratos por parte do pai guardião”.
Vale ressaltar que, entre os elementos punitivos da lei, as decisões podem entrar em conflito com o direito da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária, garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei nº8.069/1990), em seu artigo nº19. Também é importante destacar que em medidas de proteção à criança e ao adolescente aplicadas, devem ser preferidas “aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”, conforme artigo nº100 do ECA.
É questionável também se, através de determinados meios jurídicos dispostos, o poder público não acabaria promovendo uma segunda alienação parental, se referindo à do filho em relação ao genitor com quem se estabeleceu forte vínculo. Vale destacar que qualquer medida tomada contra os pais repercutirá nos filhos, o que pode provocar grande sofrimento para eles.
Em 13 de novembro de 2024, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº1812/2022, de autoria das deputadas federais Fernanda Melchionna, Vivi Reis e Sâmia Bomfim, que prevê a revogação da lei de alienação parental. A deputada Fernanda Melchionna explica que ao longo dos anos, a imprensa brasileira noticiou diversos casos em que a lei foi utilizada como pretexto para perpetuar ciclos de violência, principalmente de violência doméstica e contra meninas, e a lei se baseia numa síndrome não corroborada por inúmeras organizações científicas e que diversas entidades, tais como a ONU Mulheres, o Conselho Nacional de Direitos Humanos e o Conselho Nacional de Saúde, já denunciaram a aplicação enviesada da síndrome e recomendam a revogação da lei. “É importante ressaltar que quando tratamos desse tema, obviamente, estamos falando da proteção da criança em casos de separação dos pais. No entanto, a lei virou uma espécie de punição a mulheres em contexto de violência e abuso, que são acusadas de “alienar” seus filhos do convívio paterno quando denunciam o abusador”, destaca Fernanda Melchionna.
REFERÊNCIAS
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