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Foto do escritorMarcos Maia

A influência da cultura na expressão da sexualidade


sexualidade
Sexualidade Humana

INTRODUÇÃO

 

Este texto aborda os conflitos entre a cultura e a sexualidade humana e como a dignidade do sujeito pode ser comprometida em função de sua orientação sexual ou autodeterminação de gênero.

Portanto, como os elementos atribuídos à cultura interferem na expressão da sexualidade?

Verifica-se como efeito desse processo uma produção de sofrimento psíquico que criminaliza a população LGBTQIA+ como culpados pelas privações de direitos às quais é submetida, além da propagação da violência a ela direcionada.

Diante desse contexto, será desenvolvida uma análise sobre como instâncias culturais, atravessadas pela produção de subjetividade, comprometem a garantia do direito à expressão da sexualidade e à autodeterminação de gênero. Para isso, será elaborado um questionamento da aplicação do conceito de cultura como determinante social para a legitimação e deslegitimação de modos de vida e suas implicações; um questionamento dos processos de determinação da heteronormatividade; e uma análise dos efeitos da estigmatização da população LGBTQIA+.

É possível observar uma difusão histórica de normas que definem maneiras de expressão da sexualidade subordinadas exclusivamente à distorção de aspectos de cunho biológico, buscando uma hegemonia binária e estática pautada na heterossexualidade, reforçando assim a criação de estigmas e a criminalização do desejo infusos na cultura decorrendo em sofrimento psíquico.

 

SEXUALIDADE HUMANA

 

Ao abordar um tema correspondente à sexualidade humana, é importante adotar uma perspectiva interdisciplinar, não o reduzindo a um campo exclusivo de conhecimento, levando também em consideração desdobramentos históricos inerentes.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), define a sexualidade como “um aspecto central do ser humano ao longo da vida; ela engloba sexo, identidades e papéis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. A sexualidade é vivida e expressada por meio de pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos. Embora a sexualidade possa incluir todas essas dimensões, nem sempre todas elas são vividas ou expressas. A sexualidade é influenciada pela interação de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, jurídicos, históricos, religiosos e espirituais”.

Portanto, conforme citado, é importante também ressaltar que o conceito de sexualidade não se limita à compreensão de sexo, este entendido como algo que remete ao órgão sexual, conforme postulam as pesquisadoras da Universidade Federal de Goiás Elis Regina da Costa e Kênia Eliane de Oliveira.

Biologicamente, o processo de desenvolvimento do sexo de um indivíduo inicia-se com a determinação do sexo cromossômico que ocorre na fertilização e, posteriormente, com a distinção das gônadas na formação dos órgãos reprodutivos e dos órgãos genitais a partir de estruturas embrionárias e, sequencialmente, na construção do fenótipo sexual decorrente da resposta de tecidos a hormônios produzidos pelas gônadas, de acordo com as pesquisadoras Maricilda Palandi de Mello (Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética e Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo), Juliana de G. Assumpção (Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética) e Christine Hackel (Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética, Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo e Universidade Estadual de Campinas - Faculdade de Ciências Médicas - Departamento de Genética Médica) em artigo publicado pelo periódico Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia.

Em artigo denominado “Sexual orientation and the size of the anterior commissure in thehuman brain” (Orientação sexual e o tamanho da comissura anterior no cérebro humano) pela Proceedings of the National Academy of Sciences, a pesquisadora Laura S. Allen e o pesquisador Roger A. Gorski, do Departamento de Anatomia e Biologia Celular e Laboratório de Neuroendocrinologia da Universidade da Califórnia indicam a existência de fatores que atuam no desenvolvimento inicial do cérebro e que podem influenciar na sexualidade humana. Durante as fases críticas de desenvolvimento, tais como a gestação e a infância, os níveis de hormônios gonodais podem afetar a estruturação e a organização do cérebro, exercendo efeitos sobre a diferenciação cerebral do sexo. Além disso, fatores ambientais ainda no período fetal também interferem nesse processo, tal como a exposição de hormônios maternos durante a gestação. Os autores também destacam os fatores genéticos que também exercem efeitos sobre a determinação das características cerebrais do sexo. Esses fatores interagem de maneira complexa e podem contribuir para a formação de estruturas cerebrais que diferem entre os sexos, influenciando, assim, características comportamentais e cognitivas associadas à orientação sexual e ao gênero.

Ainda que se pretenda abordar a sexualidade isoladamente sob o ponto de vista biológico, verifica-se que os estudos desenvolvidos neste campo de conhecimento indicam que a sexualidade de um indivíduo não é determinada por mera escolha, tal como frequentemente se enuncia em discursos baseados na moral ou em demais vieses não científicos.

É importante destacar que o Conselho Federal de Medicina (CFM), no Brasil, retirou a homossexualidade do rol de doenças em 1985. Em 1987, a American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria) (APA) retirou o “Transtorno de Homossexualidade Egodistônica” do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM III). Em 1990, A World Health Organization Geneva (OMS) retirou o termo “homossexualismo” da Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, tendo em vista que o sufixo “ismo” remete à doença, descartando assim o entendimento da homossexualidade como patológica. E em 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CFP), no Brasil, vetou a patologização de práticas homoeróticas por parte dos profissionais da área.

Para além do aspecto biológico, ao longo da vida, a sexualidade humana passa por implicações de demais fatores, como elementos de ordem psíquica e social. Para além dos elementos físicos, a sexualidade é construída a partir da sua conjugação com manifestações de afetos, com as dinâmicas das relações vividas e demais fatores que interferem na constituição do sujeito, este entendido aqui como um ser social que sofre e exerce influências em seu meio através de uma relação dialética, para criação dos seus próprios modos de existência, articulando-se com os demais modos.

Nem mesmo as funções sexuais são exercidas exclusivamente pelos órgãos genitais ao longo de toda a vida. De acordo com Freud, os estágios psicossexuais iniciam na infância, desde períodos pré-genitais, marcado por zonas erógenas que caracterizam cada uma das seguintes fases em que predominam: oral, que inicia com o nascimento, se estendendo até aproximadamente os dezoito meses de idade, em que a criança, ao sugar o leite, não somente o faz por motivo de sobrevivência com a finalidade de consumir o alimento e saciar a fome, mas também por sentir prazer na zona labial com a experiência de sucção no seio materno, o que, posteriormente, se transfere para outros objetos, tais como o dedo, a chupeta, entre outros possíveis, de acordo com cada criança; a fase anal, iniciando aproximadamente aos dezoito meses e se estendendo até os três anos de idade, em que a criança descobre que obtém controle dos esfíncteres e sente prazer ao reter e expelir as fezes, com a região anal sendo a zona erógena que marca essa fase; a fase fálica, dos três aos seis anos de idade, em que a criança descobre prazer na manipulação de seus órgãos genitais, mas ainda sem associá-los às suas funções sexuais exercidas na fase adulta; o período de latência, que se estende dos seis anos de idade até a puberdade, se caracterizando por um período mais calmo em relação à sexualidade; e a fase genital, que inicia-se durante a puberdade, se estendendo até a fase adulta, em que ressurgem os impulsos sexuais da fase fálica, porém com referência no ato sexual característico da fase adulta.

A perspectiva sexual se caracteriza em cada uma das fases pela influência da libido, que é entendida como uma força variável que provoca a excitação sexual e, distinguindo-se das demais energias psíquicas num aspecto qualitativo, é distribuída e deslocada por todas as partes do corpo, podendo gerar também vetores de fixação, o que oferece uma compreensão de fenômenos psicossexuais observados ao longo da vida.

Freud ressalta que as fases pré-genitais não se separam umas das outras, mas sobrepõem-se. Mesmo na fase madura, algumas das cargas libidinais decorrentes das fases anteriores podem permanecer retidas, incorporadas em determinadas funções sexuais adultas, recalcadas ou mesmo excluídas.

É importante destacar que a sexualidade na infância não pode ser entendida a partir da noção da sexualidade adulta, em que se tem como gratificação o ato sexual genital. Durante as fases pré-genitais, a criança não tem um objeto sexual, mas sua sexualidade é autoerótica marcada por suas zonas erógenas.

Ao compreender que a sexualidade não se restringe à genitalidade, é importante destacar a influência dos fatores sociais em seu desenvolvimento. De acordo com Michel Foucault, a sexualidade é atravessada por múltiplas experiências, inclusive de cunho coletivo, ao longo ao longo da vida, inerentes ao contexto histórico, às práticas sociais e demais fatores inerentes à produção da subjetividade. Não há uma ordem exclusiva que determine a sexualidade de uma pessoa.

Vale destacar a distinção entre duas noções que frequentemente são simplificadas a um único aspecto no senso comum gerando assim uma produção social estigmatizante, que dizem respeito ao gênero e à orientação sexual. As identidades de gênero dizem respeito à forma pela qual o sujeito se reconhece em relação à masculinidade e à feminilidade; a orientação sexual corresponde ao objeto de desejo sexual de cada pessoa, conforme indica o Conselho Federal de Psicologia em suas Referências técnicas para atuação de psicólogas, psicólogos e pscólogues em políticas públicas para população LGBTQIA+.

Desde a infância de um sujeito, ocorre a exposição a uma produção social de atribuições de gênero disseminadas em diversas instituições, tais como a educação, a família, entre tantas outras, em que são determinados os brinquedos correspondentes a cada sexo, assim como as cores utilizadas em vestimentas, o tipo de roupas e diversos outros elementos previamente estabelecidos para a categorização e identificação do gênero masculino ou feminino vinculada ao sexo, a partir do que também se normatiza o que virá a determinar a orientação sexual de cada um ou cada uma.

A partir das fixações de gênero, também é instituída uma série de atribuições que se estendem à vida adulta, tais como as definições do que tradicionalmente se entendem como funções da mulher e funções do homem na sociedade e mesmo na vida privada. A determinação dessas funções específicas vinculadas ao gênero, frequentemente decorrem em condições de exploração, de subordinação, de exclusão, de abusos, e propicia também a sustentação de privilégios ao masculino em detrimento do feminino.

Além das condições distintas de acordo com cada gênero, também ocorrem as estigmatizações de toda a população a quem a identidade de gênero não corresponde ao sexo anatômico ou sequer se limita à lógica binária entre masculino e feminino.

Vale destacar que todos esses atributos extrapolam o aspecto da identidade de gênero, se expandindo à orientação sexual, subordinando-a a uma lógica heteronormativa em prol de uma hegemonia em que qualquer orientação distinta da heterossexual é considerada como anormal.

Observa-se que os assuntos relacionados à sexualidade, sobretudo a questão de gênero, também são atravessados por outros aspectos que, quando combinados, frequentemente agravam a tensão vivida pelas pessoas culturalmente criminalizadas. Judith Butler, em seu livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, afirma que “o gênero nem sempre se constituiu de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece intersecções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas. Resulta que se tornou impossível separar a noção de “gênero” das intersecções políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida”.

Com essa compreensão, o conceito de interseccionalidade é adotado no campo da Psicologia no Brasil, correspondendo a uma abordagem dos problemas inerentes à sexualidade de forma mais ampla, articulada aos demais aspectos mencionados.

É possível entender que toda essa conjuntura é construída socialmente, muitas vezes de maneira implícita, enunciada em discursos, se tornando mais imperceptível na medida em que se torna “natural”. Esse processo ocorre a partir da produção de subjetividade, que influencia na maneira de se perceber o mundo.

A produção de subjetividade estabelece uma conexão entre uma natureza psíquica e uma natureza sócio-histórica. Compreende-se como natureza psíquica a particularidade de como cada condição é vivida por cada sujeito. No entanto, no âmbito sócio-histórico, podem ser considerados fatores políticos e sociais que instituem formas de viver, de perceber o mundo, valores éticos e morais, dentre outros, e seus pontos de cortes e rupturas assim como seus contornos de continuidade e descontinuidade históricas.

Considerando a abrangência da produção de subjetividade, operando através dessas redes de conexões em fluxo contínuo, se articulam os agenciamentos de enunciação. Tais agenciamentos, de acordo com os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, “coordenam os processos de subjetivação ou as atribuições de sujeitos na língua, e que não dependem nem um pouco dela”.

Esses autores indicam que ocorrem os agenciamentos da palavra de ordem. Porém, a palavra de ordem a que se referem não se trata exclusivamente de uma ordem transmitida através de uma fala imperativa, pois ela está implícita em diversos modos de linguagem, carregando uma série de atributos.

É possível observar esses agenciamentos em conteúdos jocosos como, por exemplo, em paródias em que um personagem com atributos que rompem com a regra culturalmente difusa cisgênero atua de forma caricata, reforçando estereótipos naturalizados no que se pode denominar como senso comum.

A partir do riso provocado a partir de roteiros que enunciam um sistema binário heterossexual como unicamente aceito, se favorece a criação de piadas e jargões que reforçam e naturalizam o preconceito na cultura em relação às formas de expressão da sexualidade que rompem com esse modelo.

O cineasta e poeta italiano Pier Paolo Pasolini, referindo-se a uma “presença expressiva”, aponta que “o “discurso” não verbal é “dotado de uma força de persuasão que nenhuma expressão verbal possui”. Complementando, o sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato destaca que “podemos esquecer o que nos foi ensinado por meio das palavras, mas não poderemos jamais esquecer o que nos foi ensinado por meio das coisas”.

Como característica desse processo contínuo que incide sobre a vida de um modo geral, é possível observar a propensão a uma hierarquia que conduz a uma ideia de superioridade e inferioridade de acordo com o enquadramento de cada um às modalidades de valores predominantes, afetando também nas relações humanas. Os pesquisadores em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Marco Aurélio Máximo Prado, Marco Antônio Torres, Frederico Viana Machado e Frederico Alves Costa afirmam que “no campo social a cristalização dos valores sociais reforçará a hierarquização social a partir de diversos mecanismos de produção do outro. Neste sentido, no plano institucional poderemos identificar a legitimidade de ideologias que naturalizam relações de violência, discriminação e preconceito, e do ponto de vista psicológico, baixa autoestima, baixo autoconceito, sentimentos de inferioridade com relação a identificações sexuais, sociais, culturais e políticas. Estas dimensões (institucionais e psicológicas) são inseparáveis e se complementam através de dinâmicas de sustentação das subcidadanias”.

Considerando as possibilidades existentes a partir dos processos de subjetivação, é fundamental que o próprio conceito de cultura não seja acionado com uma função determinista. Guattari e a psicanalista Suely Rolnik fazem uma crítica a esse conceito, que, para os autores, pode ser um conceito problemático, visto que também produz indivíduos normalizados articulando-se hierarquicamente através de sistemas implícitos de valores e submissão. Deste modo, é feita uma observação a respeito de três utilizações de sentidos de cultura: a “cultura-valor”, que corresponde a um julgamento sobre quem tem e quem não tem cultura; a “cultura-alma coletiva”, correspondente a uma identidade cultural previamente estabelecida, como, por exemplo, cultura underground, cultura pobre etc.; e “cultura-mercadoria”, que são todos os bens e equipamentos, como casas de cultura, todos os objetos que agem como base teórica e ideológica, que são veiculados no circuito de mercado.

Os processos de subjetivação estão sempre em movimento numa relação de forças que agem a partir dos dispositivos de enunciações. Na Grécia Antiga, de acordo com Foucault em sua obra “História da sexualidade II”, por exemplo, não existia uma noção binária no que diz respeito ao uso dos prazeres. Havia tolerância para os relacionamentos entre pessoas tanto com pessoas do sexo oposto quanto com pessoas do mesmo sexo. A descrição dessas formas de relações da época a partir do que se entende atualmente como bissexualidade é anacrônica, tendo em vista que esse conceito é acionado a partir de uma lógica de heterossexualidade compulsória, o que não existia para os gregos naquele momento. Não era feita a polarização entre dois prazeres distintos, as formas de prazer correspondiam a cada indivíduo ou a cada momento de sua existência. “Podemos falar de sua "bissexualidade" ao pensarmos na livre escolha que eles se davam entre os dois sexos, mas essa possibilidade não era referida por eles a uma estrutura dupla, ambivalente e ''bissexual" do desejo”.

Essas formas de uso dos prazeres gregos, com o tempo, foram sofrendo influências de tendências inerentes a cada momento histórico. Sobretudo, decorrentes dos atributos de gênero, tal como a maneira pela qual a mulher era tratada na sociedade, a moral de austeridade em relação às práticas sexuais, as reflexões em torno do que se poderia entender como um amor verdadeiro, entre outros atravessamentos característicos das relações de poder vigentes.

 

OS EFEITOS DA CULTURA DA HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA

 

A partir da segunda metade do século XVIII, de acordo com Foucault, surge uma tecnologia de poder que passa a coexistir com o poder disciplinar, que até então era característico pelo exercício de poder imposto individualmente sobre o corpo como uma espécie de “adestramento” que visava manter o controle e a disciplina, aplicado nas prisões, em fábricas, escolas e demais dispositivos. Essa então nova modalidade, denominada pelo autor como biopoder, se caracteriza por abranger toda a espécie humana, as grandes massas, não se reduzindo ao indivíduo, sendo assim um poder global estabelecido através dos corpos com um maior investimento na subjetividade. Se estabelece uma finalidade de gestão da vida, frequentemente pela via de um discurso de saúde, de bem-estar, de categorização de indivíduos sob a ótica dicotômica entre normal e patológico.

É possível compreender o biopoder, sobretudo, como um operador político de territorialização discursiva determinando formas de vida e, não somente isso, eliminando modos de existência. Cabe mencionar o caso publicado por Foucault sobre Herculine Barbin, ocorrido na França no século XIX, momento em que havia uma discussão em torno do que seria o “verdadeiro sexo” de um indivíduo.

Herculine era uma pessoa de característica hermafrodita. Ultrajava uma aparência associada ao gênero feminino e tinha relações com meninas. Após confissões feitas a um médico e a um padre, foi juridicamente forçada a se submeter a uma mudança de sexo para o masculino passando a chamar-se Abel Barbin (anteriormente, era comumente chamada de Alexina). Portanto, aos 28 anos de idade, recorreu ao suicídio após uma vida angustiada, conforme narrado em seu diário, pelas mazelas provocadas pelo teor normativo de sua época em relação à sua identidade e ao sexo. Mas esse contexto normativo e excludente está no passado? Quantas Herculines ainda existem?

É possível observar o preconceito contra a população que subverte as normas da heterossexualidade pretensamente compulsória na cultura atual. Além das formas de privações de direitos, das práticas excludentes verificadas em diversos setores da sociedade, a disseminação da violência contra essa população.

Dados da Trans Murder Monitoring (TMM) (Trans Murder Monitoring 2023 Global Update. Disponível em: https://transrespect.org/en/trans-murder-monitoring-2023/) indicam que entre 01 de outubro de 2022 e 30 de setembro de 2023, 321 pessoas trans e de gênero diverso foram assassinadas, em que 94% das vítimas eram mulheres transgênero ou pessoas transfemininas. Numa escala global, 48% das pessoas assassinadas eram profissionais do sexo, porém, no continente europeu, esse percentual corresponde a 78%. Ocorreu também um aumento em relação ao levantamento anterior em que 80% das pessoas trans assassinadas foram afetadas pelo racismo (o percentual era de 65% no ano anterior). Na Europa, 45% das pessoas assassinadas eram migrantes ou refugiados. Também foi constatado que 74% de todos os assassinatos registrados ocorreram na América Latina e no Caribe, sendo 31% do total no Brasil. A faixa etária mais afetada por esses crimes foi a população de idade entre 19 e 25 anos.

No Brasil, de acordo com os dados publicados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) (2024), em 2023, 145 pessoas trans foram assassinadas, sendo 136 casos contra travestis e mulheres trans/transexuais e 9 casos contra homens trans e pessoas transmasculinas. Entre esses casos, 90 dos assassinatos (correspondente a 65%) foram cometidos fora das capitais, ou seja, em cidades do interior. Em levantamento dos casos entre os anos de 2017 e 2023, 79% das vítimas tinham idade entre 13 e 35 anos. Foi observado que em 2023, pelo menos 72% das vítimas assassinadas eram pessoas trans negras. Conforme o dossiê, em 2023, o Brasil segue na liderança como o país onde ocorrem mais casos de assassinatos de pessoas trans no mundo.

No contexto brasileiro, vale destacar que, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), a partir de 2019, as práticas de transfobia e homofobia passam a ser vinculadas ao Art. nº20 da Lei nº7716/1989 como crimes de racismo.

Conforme se pode observar, existe uma disparidade entre os casos cometidos contra vítimas que se identificam com o gênero feminino, assim como contra vítimas negras, o que sinaliza uma sinergia entre os âmbitos da transfobia, machismo, misoginia e racismo. Também atrai a atenção o elevado índice de vítimas profissionais do sexo, o que pode ser entendido como um analisador das dificuldades enfrentadas pelas pessoas trans para inserção no mercado de trabalho.

O dossiê publicado pela Antra (2024) também destaca que a última pesquisa no Brasil foi realizada durante um governo que se posiciona publicamente em prol de uma política de defesa à diversidade, porém, no contexto ainda polarizado como o atual no país, o segmento trans permanece sendo alvo do que é denominado como milícias antigênero.

Ainda que haja uma forte carga de preconceitos que resultam em tentativas de privação de direitos da população LGBTQIA+ e, conforme apresentado, até mesmo em execuções sumárias, também há uma luta através de movimentos sociais e setores específicos da sociedade para a garantia de uma cidadania justa. Em 2011 no Brasil, em julgamento à ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº4277 e à ADPF (Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental) nº132, o Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu a união estável entre casais homoafetivos. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autorizou os cartórios do país a registrarem casamentos civis e uniões estáveis entre casais homoafetivos através da Resolução nº175, o que contribuiu para o não impedimento de adoção de crianças e de adolescentes por pessoas do mesmo sexo, e em 2017, através do Provimento nº63, instituiu o registro de filhos gerados através das técnicas de reprodução assistida, incluindo de casais homoafetivos.

Uma das dificuldades da população trans no Brasil diz respeito ao reconhecimento do nome social. Portanto, também há conquistas do segmento nesse aspecto, através da Portaria nº1820/2019, que garante o reconhecimento no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como do Parecer do Conselho Nacional de Educação / Conselho Pleno CNE/CP nº 14/2017, que estabelece o reconhecimento no âmbito da Educação Básica e da Resolução CNE/CP nº 1/2018, que determina a utilização do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares. Por fim, o Decreto Presidencial nº8727/2016 prevê o reconhecimento do nome social nos órgãos da administração pública.

Assim, observa-se que mesmo havendo conquistas formais de garantia de direitos para a população aqui abordada, o processo é mais lento na esfera cultural. Em algumas localidades, o preconceito se manifesta de maneira mais severa, chegando às últimas consequências, como execuções sumárias, conforme apresentado, mas também existem as discriminações que circulam de maneira implícita, não declaradas diretamente, eliminando modos de existência e privando populações de sua dignidade.

 

DESFECHO

 

Neste texto, foi apresentado o conceito de sexualidade atualmente compreendido no campo da ciência, os fatores que a influenciam e a diversidade de possibilidades a partir das variáveis em torno do tema.

As possibilidades de expressões da sexualidade desenvolvidas ao longo da vida podem ser confirmadas, sobretudo, pelo ponto de vista biológico, que frequentemente é distorcido pelos discursos excludentes numa visão simplista que o reduz ao mero sexo anatômico a partir da descrição dos órgãos genitais, impondo uma perspectiva binária em que a identidade de gênero e a orientação sexual devem estar de acordo com o órgão sexual anatômico e qualquer expressão que rompa com esse modelo é entendida como uma aberração ou criminalizada moralmente como uma obscenidade de escolha própria. Entretanto, os estudos comprovam que a sexualidade é influenciada por fatores ambientais, incluindo o ambiente fetal, hormonais, genéticos e cerebrais, não sendo definida por mera escolha individual.

Também foi abordada uma perspectiva psicanalítica a partir das contribuições de Freud que indicam o desenvolvimento da sexualidade desde a mais tenra infância, num viés pré-genital, distinta do que mais tarde passa a ser a sexualidade na vida adulta.

Além disso, foram abordados os aspectos sociais inerentes aos dispositivos de produção de subjetividade que criam formas de perceber o mundo e os regimes de pensamentos dominantes que constituem o sujeito.

Diante desse contexto, foram apresentados alguns dados levantados por entidades setoriais que demonstram, como efeito de uma cultura de heterossexualidade compulsória, os índices de violência contra a população LGBTQIA+ no Brasil e no mundo.

Assim, entende-se que uma cultura não é uma instância transcendental previamente determinada e estática, mas que os seus planos de imanência são decorrentes das relações de forças e do exercício de poder aos quais é inerente. Com isso, é compreendido que os discursos que se impõem sobre o tema da sexualidade são produzidos pelos setores hegemônicos da sociedade, mas são suscetíveis a rupturas, tais como algumas conquistas dos setores LGBTQIA+. A partir dos processos de singularização, é possível criar novos universos de referências de modo que provoquem transformações nos contextos culturais, tendo em vista a heterogeneidade dos indivíduos que vivem em sociedade.


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